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Cinema Educativo

Seria difícil estabelecer um único marco para o início das relações entre cinema e educação. De modo geral, podemos dizer que a própria consolidação do mercado cinematográfico (salas de cinema, aparelhos de projeção, circulação e produção de filmes e etc.) se deu em comunhão dos pressupostos de “instruir-educar-recrear[1]” por meio das experiências desenvolvidas no contato da sociedade com as imagens fixas e em movimento.

Desde o início do século XX, educadores já buscavam utilizar desse recurso para dar a ver e compreender melhor “aquilo que está fora do alcance da vista, por estar distante no espaço e no tempo ou pelo tamanho: pequeno ou grande demais” (Bruzzo, 2004, p. 163). Em São Paulo, por exemplo, no ano de 1910, “a empresa de [Francisco] Serrador, atendendo ao pedido de um lente da Escola Normal, resolveu organizar sessões para alunos das escolas, focalizando assuntos instrutivos, tais como paisagens terrestres, marítimas e fluviais, costumes nacionais, microbiologia, fatos astronômicos, acidentes vulcânicos, terremotos, vida de personalidades famosas etc” (Araujo, 1981, p.187).

O cinema começou a ser produzido no país como forma de conhecer melhor o território e aspectos do seu cotidiano. Sob esses pressupostos, encontravam-se os filmes científico-etnográficos (como nas imagens captadas durante a Expedição Rondon que compunham a filmoteca do Museu Nacional) e também os “naturais” (documentários em geral), nos quais incluíam-se os primeiros cinejornais.  

Novas práticas educativas pressupunham um conhecimento baseado na “visibilidade da experiência realizada em laboratório, pela excursão a locais históricos ou de interesse científico e pela observação da realidade circundante”. Nas reformas educacionais que ocorreram nos diversos estados brasileiros ao longo da década de 1920, o cinema aparece como um recurso necessário à renovação do ensino sendo defendido nos debates “escolanovistas” (Vidal, 1994, p. 25).

Ao longo dos anos 1930, a produção desses filmes foi sendo dirigida por políticas públicas desenvolvidas a partir de embates e aproximações entre cineastas e educadores. Estes últimos, ocuparam-se tanto dos filmes exibidos nas salas de cinema quanto nas escolas e outras instituições culturais, o que torna o termo “cinema educativo” ampliado ao que diz respeito a educação formal e informal da sociedade. Preceitos científicos, nacionalizadores e/ou religiosos entrecruzavam-se no modo como o cinema deveria ser usado e interpretado pela sociedade e incluído na escola.

Os esforços empreendidos pela Associação Brasileira de Educação (ABE), por exemplo, por um controle de “cunho acentuadamente cultural” culminaram na publicação do decreto 21.240 (4 de abril de 1932) que passava o serviço de censura antes sob responsabilidade do Ministério da Justiça para o Ministério da Educação. O documento indica a fundação de uma Comissão de Censura para determinar critérios classificadores dos filmes e meios de colocar em prática a obrigatoriedade da inclusão de filmes nacionais de cunho educativo nas programações das salas de cinema. Além disso, define o filme educativo como os que tinham “por objetivo intencional divulgar conhecimentos científicos, como aqueles cujo o entrecho musical ou figurado se desenvolver em torno de motivos artísticos, tendentes a revelar ao público os grandes aspectos da natureza ou da cultura” (Morettin, 2013, pp.125-129; Simis, 2008, pp. 25-38).

Em 1935, o governo federal cria o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), subordinado ao Ministério da Justiça. Nesse momento, o Ministério da Educação perde sua atuação na censura cinematográfica, além da taxa cinematográfica para educação popular e dos recursos que mantinham a “Revista Nacional de Educação”. No entanto, esse Ministério se organiza para criar em 1937, o Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), cuja atuação destinava-se “a promover e orientar a utilização cinematográfica, especialmente como processo auxiliar ao ensino, e ainda como meio de educação popular” (Decreto Lei n. 378, 13 de janeiro de 1937). Os filmes realizados eram para exibição em escolas, institutos de cultura, centros operários, agremiações esportivas e cinemas. (Morettin, 2013, pp.125-129; Simis, 2008, pp. 25-38).

Ao longo da década de 1930, também foram publicadas diversas obras especializadas no estudo sobre o cinema educativo. Dentre as principais estão: o XIV volume da Coleção Bibliotheca de Educação, intitulado “Cinema e Educação”, escrito pelos professores do Colégio Pedro II, Jonathas Serrano e Venâncio Filho (1930); “Cinema contra Cinema: bases geraes para um esboço de organização do cinema educativo no Brasil” do promotor público Joaquim Canuto Mendes de Almeida (1931), e a pesquisa de Roberto Assumpção de Araujo, “O cinema sonoro e a educação” (1939). De modo geral, os autores traçam uma discussão da história do cinema incluindo as experiências internacionais e das iniciativas brasileiras que fundamentam a institucionalização do cinema educativo. Além disso, tratam dos aspectos técnicos e apresentam possibilidades metodológicas, tornando-se referências para educadores de todo o país.

Os materiais do INCE circularam pelo Brasil e, também, no exterior. O órgão funcionou entre os anos de 1937 a 1966, sendo os filmes divididos por duas fases: primeira (1937-1946), sob a direção de Roquette Pinto e, a segunda, com Pedro Gouvêa (1946-1961) e Flávio Tambellini (1961-1966). A diferença está nos assuntos veiculados. O diretor Humberto Mauro na primeira fase realizou filmes caracterizados pela supressão de conflitos sociais e unificação da identidade nacional e depois, investiu no mundo rural e nas diversas regionalidades (Schvarzman, 2004). Filmes oriundos dessas fases encontram-se disponíveis para visualização no Banco de Conteúdos Culturais da Cinemateca Brasileira (http://www.bcc.org.br/filmes/ince?page=6).

Nos anos 1940, passam a circular também no Brasil filmes educativos proveniente de outros países. Como exemplo, podemos citar as produções realizadas pela Enciclopedia Britanica Films e pela Monogram Pictures (Cine-Reporter, 7 de fevereiro de 1948 e 21 de maio de 1949 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional). Além disso, outras instituições brasileiras também começam a produzir e fazer circular filmes considerados de caráter educativo. Em âmbito federal, além do INCE, havia também o Serviço de Cinema do Ministério da Agricultura e a Agência Nacional. Filmes também eram produzidos no contexto da produção científica em universidades, como foi o caso da Universidade de São Paulo.   

Em 1954, visitaram o Brasil duas importantes referências do cinema científico e educativo francês, Jean Painlevé e Sonika Bo. Tanto o presidente da Associação Internacional do Cinema Científico quanto a diretora do Cineclube Infantil Cendrillon de Paris vieram ao Brasil a convite do diretor do INCE, Pedro Gouvêa, para eventos realizados juntamente com o Festival Internacional de Cinema (realizado em São Paulo). O primeiro, apresentou em São Paulo, filmes de 14 países e realizou palestras para estudantes, cientistas e público em geral. Além dos filmes trazidos por ele, na ocasião estava prevista também a exibição de “filmes do INCE, da Universidade de São Paulo e, provavelmente do Ministério da Agricultura” (A Cena Muda, 17 de fevereiro de 1954, Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional). Sonika Bo ficou responsável pela organização da programação do Festival Infantil. Nesse evento, ela trouxe filmes de sua própria filmoteca especializada em cinema infantil (“com mais de 800 películas de todo o mundo”) e tratou de falar sobre a experiência do cineclube com as crianças na França. (Cine-Reporter, 20 de fevereiro de 1954. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional). Além de exibir filmes de franceses, dinamarqueses, tcheco, sueco e russo, incluiu também um brasileiro (“O Saci”, de Rodolfo Nanni) (Lara, 2016, p. 2).

Mesmo já sendo conhecidas todas essas inciativas oficiais, um caminho aberto a pesquisa ainda é tratar da circulação desses filmes e das práticas nos ambientes escolares trabalhando com os acervos escolares. No entanto, a maior dificuldade encontrada pelos pesquisadores está na preservação e disponibilização de documentos históricos oriundos de instituições escolares[2]

A experiência da professora Ilka Brunhilde Laurito, na prática do cinema para crianças e adolescentes, permite que reconheçamos um pouco da história das relações entre cinema e educação no Brasil até o início dos anos 1960. Como diretora do Departamento Infanto-Juvenil, Ilka foi responsável pela publicação do caderno 2 da Cinemateca Brasileira (Laurito, 1962). Trata-se de um “plano de estudos e orientação bibliográfica” no qual apresenta as principais frentes teóricas reunidas para um trabalho inovador com o cinema. Nesse itinerário, três movimentos são essenciais: primeiro os estudos sobre arte e educação que aos poucos incluem o cinema como “nova e rica e rica forma de expressão”; segundo, bibliografias sobre psicologia e sociologia da infância e do cinema, e terceiro, as pesquisas sobre estética cinematográfica. Além disso, em termos de iniciativas práticas inclui textos que dão conta de apresentar as experiências com os cineclubes (adultos e infanto-juvenis) e publicações sobre o cinema educativo como as da década de 1930, incluindo textos publicados em boletins da UNESCO, artigos em revistas nacionais e internacionais (“Revista de Cultura Cinematográfica”, “Revue Internationale du Cinéma”, “Revista Internacional del Cine”, “Revue Internationale de Filmologie”) e outras.

Seu trabalho na formação de cineclubinhos em escolas, objetivava inserir o cinema não somente como recurso pedagógico, mas como meio de expressão infantil (“sentindo, apreendendo, compreendendo, criticando e escolhendo”). Ilka buscava lidar com o repertório adquirido pelas crianças nas salas de cinema comerciais (com os filmes de enredo na maioria estrangeiros, principalmente hollywoodianos) e apresentar outros filmes coletados em filmotecas de consulados e particulares, de distribuidoras dos serviços de recursos audiovisuais na USP, no Centro Regional de Pesquisas Educacionais, no próprio INCE, nas Seções de Cinema Educativo das Secretarias de Educação e na Cinemateca Brasileira. No contato com os alunos, observava e analisava as reações e gostos e incentivava o debate e a análise crítica dos filmes. Valorizava também o surgimento de produções infantis nacionais (como “O Saci”, “Sinfonia Amazônica” e “Pluft, o fantasminha”) e ambicionava a possibilidade de inserção de produção de filmes pelas crianças no ambiente escolar (Laurito, 1962).

 

Referências bibliográficas

 

Almeida, J. C. M (1931). Cinema contra cinema. Bases gerais para um esboço de organização do cinema educativo no Brasil. São Paulo: São Paulo Editora.

 

Araújo, R. A. (1939). O cinema sonoro e a educação. São Paulo: São Paulo Editora.

 

Araújo, V. P (1981). Salões, Circos e Cinemas de São Paulo. São Paulo: Ed. Perspectiva.

 

Bruzzo, C (2004). Filme “Ensinante”: o interesse pelo cinema educativo no Brasil. Pro-posições, V.15, n.1 (43), jan-abr/2014. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643849/11327. Acesso em: 15.03.2018.

 

Morettin, E. V. (2013). Humberto Mauro, Cinema, História. São Paulo: Alameda. 

 

Lara, T (2016). Cinema, infância e educação no I Festival Internacional de Cinema. Mnemocine, 01 março. Disponível em: http://www.mnemocine.com.br/index.php/cinema-categoria/24-histcinema/216-thais-lara Acesso em: 15.03.2018.

Laurito, I. B. (1962). Cinema e Infância. Cadernos da Cinemateca 2. São Paulo: Fundação Cinemateca Brasileira.

Monteiro, A. N. (2006). O cinema educativo como inovação pedagógica na Escola Primária Paulista (1933-1944). Dissertação (Mestrado). São Paulo: Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo.

Serrano, J; Venancio Filho, F (1930) Cinema e Educação. São Paulo: Melhoramentos, 1930.

 

Schvarzman, S. (2004). Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

Simis, A (1996). Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: Annablume.

 

Vidal, D (1994). Cinema, Laboratórios, Ciências Físicas e Escola Nova. Cad. Pesq, São Paulo, n.89, p. 24-28, maio.

 

[1] Esse foi o letreiro de uma propaganda em uma edição da revista Careta de 1912, cuja imagem é de uma família assistindo a um filme da Pathé Frères (Morettin, 2001, p. 131).

[2] Ana Nicolaça Monteiro chama atenção para esse aspecto em sua dissertação (2006) que trata da inserção do Cinema Educativo na escola primária do estado de São Paulo. Na pesquisa, ela evidencia as diversas leis e iniciativas na produção dos filmes e circulação de aparelhos, mas também trata das dificuldades enfrentadas para a inclusão do cinema como prática educativa no interior das instituições escolares. 

Autoria: Fernanda Franchini

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